MILAGRES, NOSSA TERRA CARIRI
Depois de se arrastarem pelo litoral feito caranguejos, como
afirmou Frei Vicente do Salvador, toda a Terra Brasilis foi sendo ocupada e todos os povos originários que aqui habitavam foram se tornando vítimas da sanha ambiciosa dos exploradores. Aos poucos todo o interior dividido em Sesmarias, foi se transformando em povoados, vilas, cidades e o colonizador ia tecendo a história que melhor se adequasse aos seus interesses. Com a nossa Milagres não diferente, e durante muitos anos nos contentamos com a história que foi repassada às gerações, a do branco explorador Souza Presa e da “índia” a quem nem se quer deram direito ao nome, até porque sendo de um “povo violento e canibal”, o que esperar? Depois ouviu-se, mas com voz baixinha, de que haveria um senhor Bento Correia Lima que havia sido o sesmeiro responsável a explorar oficialmente essas terras, a quem
foi destinado somente uma rua nos arredores do centro da cidade. Tomamos o mito fundador e como verdade absoluta e nos aventuramos a enaltecê-lo em verso e prosa e a memória dos povos originários foi sendo empurrada para tão distante de nós que parecia que nem sequer existiram. Aqui e ali ia surgindo em som abafado a história dos vencidos em forma
de ditos populares, “minha avó foi pega a dente de cachorro”, com o conhecimento ancestral sobre ervas medicinais, aprendi a conhecer esses “matos” com os “caboclinhos”, através das
feições fenotípicas de homens e mulheres de pele escura e cabelos lisos que não se assemelhavam aos afrodescendentes. E isso ia dando pistas para a desconstrução do discurso oficial. Espalhados por nossa geografia haviam outras evidências como pinturas rupestres, e do chão afloraram machadinhas, igaçabas, utensílios de barro e foi ficando
difícil silenciar a voz dos vencidos que teimava em dizer: Nós existimos! Não deu para abafar também o forte cantar dos Congos do Rosário ou os Pretinhos de Congos de Nossa Senhora que rasgaram por mais de dois séculos o discurso que relegava a história do negro na nossa cidade somente a questão da escravidão. Com seu colorido vibrante e seus espelhos iluminaram a história do povo preto dizendo: Somos reis e rainhas, “nossos passos vêm de longe”, alegrem-se! Porém numa cidade em que o poder dos coronéis se constituiu como forte elemento político desde o império até a ditadura militar, a resistência torna-se muito árdua e essas manifestações não interessavam a quem estivesse no poder. É importante salientar que as narrativas históricas tem um enorme poder sobre a construção identitária de um povo sendo as relações políticas, culturais e sociais profundamente marcadas por esta. Não saber quem somos faz com que nos tornemos vulneráveis e dificulta a nossa organização e construção do sentimento de pertença. Essa afirmação parte de uma inquietação nascida das escutas de mais de duas décadas dos jovens negros e pobres que frequentaram e frequentam a escola pública da nossa cidade onde os mesmos afirmavam e afirmam que “Milagres não tem nada que preste”, “Eu quero é ir embora”, “Milagres é bom é de afundar”. Isso me incomodava e incomoda, e ficava querendo entender a causa dessa narrativa depreciativa com sua terra. O discurso oficial os deixava de fora da sua própria história, não eram brancos, sua pele escura os denunciava que não eram bem vindos, pois ou seriam descendentes dos “terríveis e cruéis bárbaros tapuias ou aos negros escravizados, que sofreram maus tratos e que sua terra fora a última do Ceará a liberta-los” . Como afirma o historiador Pierre Nora “O acontecimento, esta novidade ininteligível, deve ser clarificado pelo historiador, que lhe tem de fornecer uma explicação provisória e plausível, e esta explicação só pode enraizar-se no passado.” Desta forma procuramos durante algum tempo tentar entender essa mentalidade da juventude milagrense, até que ponto a narrativa construída sobre a história do seu povo era responsável por esses sentimentos. E foi na tentativa de explicar enquanto historiadora essas questões, que a vida me deu a oportunidade de compartilhar com o Professor Carlos César Pereira de Sousa algumas informações e muitas angústias. Iniciamos um projeto para pesquisar, analisar e escrever
coletivamente a história de Milagres, não vingou. Vários temas para pesquisa iam sendo propostos pelos estudantes da E.E.M Dona Antônia Lindalva de Morais e orientados pelos Professores Carlos César e pela professora Maria de Lurdes Gonçalves Guimarães e demais professores da área, começamos a perceber que havia muito sobre nós a ser revelado em acervos de documentos que iam sendo encontrados, em fontes orais como a “meizinheira” Dona Diunizia e o Mestre Doca Zacarias, e nos achados que os alunos iam trazendo como machadinhas, restos de cerâmicas encontrados no quintal, dentre outros. É dessa forma (e com outros perrengues não revelados), que nasce MILAGRES: NOSSA TERRA CARIRI, importante obra que apresenta e discute a nossa história desde os primeiros momentos do encontro entre o colonizador e os povos originários até as últimas décadas do século XX. Uma profunda análise das questões políticas, religiosas, culturais, educacionais escrita com muito zelo e respeito, por alguém que não sendo milagrense a escreve sem paixões,
com a sobriedade necessária para construir uma perquirição científica criteriosa e amplamente fundamentada em documentos, conectando sempre a nossa história local às questões regionais e nacionais de cada época. Uma obra, que pela amplitude será de interesse regional. Entendo que se constituirá com importante referencial para que possamos compreender nossa gênese, nos fortalecer enquanto povo e quiçá entendermos que podemos ser uma unidade na diversidade. Se reconhecermos os nossos erros, sem melindres, identificarmos nossas fortalezas para que possamos nos projetar não somente para o futuro, como propõe o obelisco construído para marcar a passagem do centenário em 1946. Para começarmos a viver novos momentos hoje.
ANA
MARIA NUNES DA SILVA
HISTORIADORA E EDUCADORA